sábado, 30 de agosto de 2008

A PEDRA DO ÍNDIO

— Tonho, Tonho — o grito ecoou por entre as pedras chamando meu nome.
Eu estava inerte olhando a coruja dando seus últimos suspiros, abria e fechava o bico me olhando como quem queria me dizer algo. Eu conseguia sentir o seu minúsculo corpo inflando e desinflando por entre os dedos. Era quente e frágil. Seus olhos invadiram os meus. Compartilhei a sua dor, provocada pelo chumbo que eu havia lhe impregnado ao peito da pobre ave. Dos meus olhos caiu uma lágrima. Tantos anos de caçador e atirador nunca tinha me dado conta que eu estava tirando vidas de animais inocentes. E o pior que era por puro prazer. Mas por aquela estava sem jeito. Puxei-lhe o pescoço, arrancando a cabeça para minimizá-lhe a dor. Coloquei-a no bisaco, joguei a cabeça fora...
— Eu tô aqui Augusto, do outro lado da pedra — Respondi aliviando a preocupação do parceiro de caçadas.
— Cadê João tá aí com você? — perguntou-me
— Tá! Tá sim, bem aqui perto. Estou vendo ele.
Augusto veio aparecendo por trás da pedra e sentou-se dando um forte suspiro de cansaço. Eu também estava cansado e sentei ao seu lado. Tirando o fumo do bolso.
— Tem cigarro de venda aqui Tonho — Disse Augusto enfiando a mão no bolso.
— Não! Quero nada! Quero fumar é um pezinho de burro mesmo! Assim no mato só existem duas coisas gostosas: uma rolinha assada na brasa com farinha e café, mas em primeiro lugar vem o pé de burro. Esse cheiro do cigarro de fumo dá uma tranqüilidade que só vendo.
— Pois eu vou fumar é meu derbyzinho mesmo. — Augusto puxou o cigarro da carteira e enfiou a mão no bisaco tateando em busca da caixa de fósforo.
Nesse momento ouvimos o tiro de João, que repetia-se mundo a fora em forma de eco. Corri a vista e o vi passando os pés por cima do mato baixo, abrindo a pastagem para que pudesse encontrar a rolinha que previa ter matado. Depois veio ao nosso encontro meio envergonhado por ter errado o tiro.
— Mas rapaz, dei um tiro numa parelha de rolinha e perdi ali dentro do mato. Num encontrei não, visse!.
— Você errou foi o tiro barriga verde. As rolinha voaram pras bandas de lá e você não viu. Eu vi daqui. — Disse Augusto caçoando do primo que de caçador não tinha nada. Era um moleque de seus dezesseis anos, usava óculos de grau. Branquelo que só vendo. — Pode procurar outro ramo meu filho que esse de caçar não é pra você não! Já matou quantas?
— Seis. Quatro rolinhas, um galo de campina e um papa-sebo. Mas é porque tá fraco demais hoje.
— Fraco tá mesmo, mas eu já matei trinta e três. E você Tonho?
— Só dezenove! — Antes que Augusto começasse rir — puxei do bisaco também um tejo que
Eu havia matado a poucos minutos a trás. E calei-lhe logo a boca. Porque Augusto é assim: se não acompanhar ele, ele maltrata mesmo. Pabuloso que só vendo.
— Ô tejão! Fez a caça! — Exclamou Augusto estupefato
João logo seguiu pra perto de mim, ajeitou o óculos e pegou o tejo testando o peso do bicho. Depois de toda excitação dos colegas e a minha exaltação como caçador eu terminava de fazer o meu cigarro, passei a língua para colar o papel e peguei também a caixa de fósforo acendendo o cigarro e dando a primeira tragada. É a mais prazerosa sem dúvida! João tirou o bisaco, sentou-se também e começou tirar os carregos para carregar sua espingarda novamente. Eu e Augusto usávamos cartucheira, João não! Mediu a pólvora, colocou. Depois a bucha, tirou a vareta e socou bastante para que o tiro ficasse de tinir. Um bocado de chumbo e por última mais bucha, a última bucha não se soca tanto, coloca-se apenas para segurar o chumbo dentro do cano da espingarda. Pronto! Estava preparado para cometer outro assassinato covarde.
Eu estava impressionado não sei porquê, mas havia decidido naquele momento que nunca mais mataria bicho nenhum, nem mesmo cobra. O que me vinha a lembrança agora era os olhos da coruja que eu matara e o tejo se contorcendo ao chão no momento em que lhe dei o tiro. O pobre lagarto buscava talvez comida e eu na minha insana covardia o matei. Dentre as mortes de caça é uma das mais tristes e sofredora, pois o bicho se contorce todo ao chão, como se fosse uma broca de furar madeira. Com o tempo vai diminuído a intensidade das rodadas e vai se entregando a morte lentamente.
Pela primeira vez também torci para que João errasse o tiro e dessa vez podia garantir que era realmente pelo pássaro e não para que eu terminasse como campeão na caçada como tantas outras vezes eu fizera. Infelizmente ele não errou, matou mais uma rolinha. A alegria dele me apertava o coração. Principalmente quando veio sentar novamente junto a mim com a caça entre as mãos.
— Que horas a gente sobe pra ir embora? — perguntei.
— Por mim eu já ia agora, tenho que colocar comer paras os bichos quando chegar em casa.
— Eu também já quero ir — complementei. — Vamos subir por aqui mesmo, nós sairemos ali em Zé Aguiar e Luis de Iêiê ai nós pegaremos uma carona ali no “Chã do Espinheiro”, perto de Célia vereadora.
— Vamos — Respondeu Augusto — mas antes quero mostrar uma coisa para João. Venha aqui João atrás dessa pedra. Já viu isso aqui? — Disse mostrando as pinturas rupestres existentes nas grotas do “Chã do Espinheiro”.
Eu também não conhecia e fiquei admirado. Eram desenhos indecifráveis na sua maioria, mas alguns podíamos ver perfeitamente do que se tratava. Havia um parecido com um galo, outro com um lagarto e foi justamente desse que Augusto contou uma história.
— Dizem que esse lagarto aqui é enfeitiçado. — Contava Augusto — Se alguém passar o dedo em cima dele, redesenhado-o por três vezes aparece um índio a quem desenhou e sobe nas costas da gente para que a pessoa não possa subir a grota. Às vezes, quem desenha não ver o índio, mas que ele se agarra ás costas da gente, ah, isso se agarra.
— Como você sabe disso e quem desenhou isso aí Augusto?
— Ah, foram os povos antigos. Os índios, o povo que morava no mato antigamente.
— E Por que esse índio se agarra nas pessoas que redesenha esse calango aí?
— Não é calango não Tonho, é um lagarto enfeitiçado. Olhe o tamanho do bicho, é maior do que o tejo que tu matou hoje. E também não sei por que o índio aparece não, só sei que aparece.
— Duvido! — Exclamei.
— Pois então passe o dedo se tiver coragem.
— Ora Augusto se eu vou perder tempo com isso, me poupe de besteira desse tipo, isso é conversa de sertanejo caçador.
No fundo eu estava mesmo era com medo. Não sou de acreditar nessas coisas, mas também não sou de duvidar não. Catimbó, macumba, despacho, não acredito não, mas também não desacredito.
João mais jovem e mais afoito foi logo se aproximando para perto e perguntando como que fazia.
— É só esticar o dedo indicador e cobrir o desenho do lagarto por três vezes. E enquanto cobre diz umas palavras.
— Que palavras? — perguntou João.

“Índio valente, mais valente que tu sou eu
passando o dedo no lagarto enfeitiçado
subo a ladeira rindo de ti
pra você aparecer enfezado”

Ficamos atentos a qualquer acontecimento estranho por alguns minutos até que João disse:
— Ah, cadê o índio? Isso é conversa, não aparece índio nenhum.
— Mas ele pode aparecer daqui pra você subir a ladeira da grota e se agarrar nas suas costas
— Isso é balela! — Respondeu novamente João
Depois que decidimos ir embora falávamos sempre da pedra do índio enquanto seguíamos o caminho, e por incrível que pareça João começou a cansar durante o caminho, será que era o índio que tava nas costas dele, agarrado ao seu pescoço? Não sei! Só sei que era tudo muito estranho. Mas levando-se em conta que ele não era acostumado a andar muito e que era branco e magro podia ser fraqueza mesmo. Não sei, mas eu que não arriscava ter passado o dedo naquele calango maldito.
— Não tá sentindo um peso nas costas não João? — perguntei eu rindo da situação do branquelo.
— Nada! Isso é conversa, esse índio não existe não Tonho. Eu só to cansado mesmo.
João foi ficando cada vez mais cansado e só subiu porque nós o ajudamos, levado mesmo.
Ele disse que outro dia ia redesenhar o lagarto enfeitiçado de novo pra mostrar que não existia essa história, mas o fato é que nem eu, nem ele voltamos mais lá.

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